sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Alma-de-nôiva*




p/ Anna Leandra do sertão do Itapicuru-mirim, in memmoriam.
p/ Rosi e Wolney, 
pró Hellô H e Alice Fátima Martins 

J. Bamberg

Goiânia-Go, 21-12-2011.







Don’Anna é louca!... Rasga a realidade com as farpas de suas unhas maltratadas, crescidas, crispadas e atravessa o arruadinho largado na solina, traçando sua rota compulsiva em diagonal, sol a pino do meio-dia. Chora e chora e chora, sangue e mênstruo. Grita alto e ecoando pelas veredas ressequidas do sertão denso espalhando cinzas por onde passa qual u’a lâmina vestida de um, outrora, organdí, lascerado, encardido pelo seu corpo suarento, almiscarado. Clama pelo nome do seu amante improvável e pronunciado de modo irreconhecível. Lateja a potência do seu amor em morte anunciada. Faz do seu amor a mensagem destruidora de si e de tudo ao seu redor,”-...morre, morre, morre, que eu morrí!!!... Morre, morre, morre!!!...”, em seu clamor.



Dela, diz-se, Don’Anna é louca!... Vadeia qual fogo fatuo no meio do caapoeirão cáustico-acinzentado do cerrado recém requeimado, como se estivera nos infernos dos infernos, dos infernos. E era, e é, só, em sua própria loucura. Há nela um mal em si que respira e exuda sua própria carnefália. Corre dôida entre o arruado e o caapoeiruçu entrefechado em trama espinhenta. Sua mente, que não existe, corre mesmo que fogo no vento sêco, queimando suas lembranças tortas, de um amor que a esgarçou e destruiu. Don’Anna é louca!...  Tudo na caatinga a reconhece enquanto tal. O arvoredo tramado, as galhadas compridíssimas das unhas de gato, os bichos mortos e torrados e as raízes retorcidas pelo fogo. O seu suór ardido e a água que não há produzem seu rastro inefável e a  morte é a sua companhia. Faz parte da sua tecitura. Ela é a carpideira de sua própria agonia. Todos os dias, nasce, vive e morre na sua própria cruz de árvores retorcidas pelo fogo do cerradão incendiado onde vive e por onde corre alucinada pelas farpas das lembranças de morte latejantes, do seu amante que a abandonara pelo amor de outra e do fruto desse amor impossível, todos rasgados pelo caatingão que ela povoa em alarido contorcido em esgares. Que mais possível noiva teria sido?!... Quais laços esponsais teria atado, se pudesse revirar o seu tempo e a sua vez ?!... E mesmo assim, quantos filhos, para matar em aborto de sangue, e sangue, e sangue,teria gerado e bebido e comido ?!... Teria,isso,ocorrido, de mesmo?!...


Don’Anna é louca!... E só o caatingão do cerrado queimado e requeimado todos os anos a reconhece e a abriga como sua,essa alma angustiada, regougante, gritando o nome impronunciável do seu único e trágico amante em meio a tanto horror. E tudo isso, Deus meu, quando acaba?!...  é o que todos se perguntam...



Lá um dia, sumiu do meio das gentes. O povo, assinando a rôgo a sua inesperada ausência, caçou seus passos por todos os cantos e becos e desvãos, e dela, nada. Ela, simplesmente escafedeu-se, dizia-se, e até parecia...



Tempos bem corridos ao depois do depois do depois e na vegetação agreste u’a nova marca era acrescentada pelos trapos de carnes e pele ressequidas, ossos e panos esgarçados, bem ao modo dos seus trapos, embandeirando as unhas-de-gato, os paus-de-rato, mandacarus, macambiras, canelas-de-ema, tufos de urtigas, cansanção-de-favela, tiriricas, gravatá-de-anzol e tudo o mais que fosse espinhento ou afiado ou rascante... Tudo o que pudesse ter retido a sua carreira de dôida embrenhada em meio aos seus  gritos de perdição na sua treliça de memórias dolorosas. É, sim, o que restou dela, sim...



Lá um dia, cansados das madrugadas laceradas pela passagem repetitiva do seu fantasmão agoniado a sussurar o nome do seu amante impossível a cada mudança da constante dos ventos, alguém tirou-lhe um bendito-de-encomendação, carpiu-se su’alma, sua morte, recolheu-se, enterrou-se seus restos poucos e ferrou-se na cruz bem acima da sua cova rasa: “Don’Anna, a louca”.



Ninguém se deu ao ânimo de taxar-lhe quaisquer, “descanse em Paz” ... Nunca se sabe... Dizia-se, enquanto o sertão em seus mistérios guardava embandeirado o que ainda restara do seu vestido de nôiva, em seus farrapos espalhados e espetados nos galhos a sua mais provável alma-de-nôiva, já de antanhos tão  conhecida...





* - diz-se de trapos perdidos, esquecidos, largados ao léu, no meio da caatinga, qual assombração-sem-dono... “...tal e qual u’a alma-de-nôiva, em seu vestido,perdido...’... tentando explicar a instalação desses, no mato, à toa...