segunda-feira, 4 de abril de 2011

DU VERÓLI

p/ os meus velhos, meus, Alvina e Possidônio do Cobé,Mestre   Trajano-vaqueiro,João d’Imbuína, Manuel Catuca e Joaquinzinho do ártu d’ Mundo - Novo, Cândido Caipora, Tiodora e Tomé do Açú - da - Capivara. Minha saudade,
J. Bamberg/90


bebe-se a um defunto
fresco ou passado de pouco
pois que a defunto velho
não se bebe
se esconjura
ou se manda puxar um rosário
dois
três ou quatro
se assim pedir su'alma
(lá ela - lá dele)
sim porque alma pede
alguma couza
luz que seja
vela de espermacete
do setestrêlo luz
e ai de quem não lhe dê
ai - ai

mas se bebe
por modo mór da biúba
e seus filhinhos seus
se os tiveram
ela e o agora defunto
se não
não
e em tendo
se passe a eles
festa de muita honra
a cada trinque de copo
que se jogue por dentro
goela a baixo

um pra eu
um pra tu
um pra eu

e que Deus te dê
luz de paz
e distância lá longe

luz de vida
pra mim e os meus
mais os de Mateus
e te vá em boa ou má hora
que morte é traste de sério
mas vá com Deus
seus anjos e arcanjos
querubim não
querubim é mimo
e mimo calunga
de muita loiça fina
por qualquer coisa se zanga
zanga de calundu
e ri e chora
tudo à mesma horinha

sai de mim querubim

e eu que caí de sela
de burra cigana
e eu que quase te vi
sai de mim
e leva est'alma
pra ti não
pros céus de lonjura
onde vives com os teus maiores
anjos e arcanjos e beatos e santos
e Deus Pai - de - Tudo
querubim alminha boa
VÔ-TE


desde quando se bebe ao defunto
não sei
mas vem de antanho
lá pros idos chapadeiros do sertão
lá dentro do vão fundo que é o que fica
dentro da cabeça do bicho-homem
gerando essas idéias de coisas

puluxia se puxa de viola
- no oitão de casa e dentro não -
se o defunto foi bom vivente
se não
não se puxa indaga de quem já foi
se bebe uma larga
bem na beira da cinta do copo

sim mas longe de casa

pois casa não é o bocó
de Sarafim da venda nova
a que veio depois da velha
e aquela sim
não possuía copo de sua
se bebia no bogue de couro de mula
n'ele
aqueles que parte com "Ele" tinham
"o Rapaz" maioral das estradas
co'ele
também o prometido
o defunto - lá ele -
os outros não
jogavam o jogo sem gana nem engano
e viravam a cuia
o porongo
menos a cuité
que esta tem dono
desde o pé do seu pé
e não carece de pé pra andar
pois é alma
e bebe no pé de sua raiz

miasma de gente velha passada

cuité
de caboco pá-ié-ié
beber suas juremas
nas juremeiras do juremal


e bebe
como aqui se disse
e muito se beberá

não cachaça traçada
mas cachaça de cana-vitinha
roxa ou bandeirinha
do engenho de Martin d'Angola
'rimão de Sarafim da venda
tirada a tachada
pra esse dito fim

por mim
por ti
pelo morto
pois que morto se bebe
e a ele
bem como aqui
foi dito
e bem redito

sem édito
ou força de lei
a regra manda
que se beba e carregue
o defunto e seus carregos
cantando:
- "chega irimão-das-almas
e leva este que aqui
te entregamos
e que seja sua viagem leve
pois leves foram
seus pecadilhos
no viver do dia-a-dia
chega
irimão-das-almas..."

no decorrer do veróli
não se descure de chamar a negra
Isidora Carpideira
que sabe chorar um defunto
de louvar suas honras
em prantos de saudades
mais sentidos
que todos parentes juntos
empareados ao redor do caixão
não têm água nos olhos pra chorar
ela é a fermusura mais linda
que a corôa de flor do chapéu-de-couro
que é melhor que qualquer flor
pois rende o morto
e cura os males dos rins dos vivos

e chorar qual Isidora Nêga
n'um hay

pelo menos aqui
na roda dos Ambrósios
ou dos Pereira aparentados
nenhuns se chora
igual Isidora Nêga
defunto chorado por ela
o Chaveiro dá logo a passagem
não tem quem tolere
aquele engougo fundo
num amargor de fel de sentimentos
que nem maleita dá vantagem

mas por outra
se conte
que defunto se bebe

e tem bolinho
tem cuscuz
brevidade e paciência
toda sorte de biscoitos
que se faça do dia
e se guarde na despensa
pra abastecer o sucesso
se faltar é miséria

não se deixe faltar café
café grosso pros homens
ralinho de polme
pros meninos e muié
café caldeado pras moças
pras véias se despolpe
se não há vexame
e dos grandes

pel'amor de Deus
não se deixe também
faltar uma jacuba
u'a melada decuada de poejo
e pros velhos uma caxixa
se for no tempo celeste
da chave dos umbus
dá reforço e mata a sede
apronta o velho
pra a visão de sua viagem
dali a uns dias
quem sabe

e quem sabe é Deus

que se bebe a um defunto
em sua homenagem

porisso digo e redigo
não se deixe faltar fartura
a um defunto em sua passagem
e não é pabulagem ou receio
pois em cada um de nós
há um defunto sem aviso
da hora de sua viagem


e falando em viagem

o carreiro e seu carro de boi
encarregados da levada do funeral

roda gemendo no sebo
ganindo da solidão
da estrada que leva o morto
lá pro fim do caminho
da porteira do cemitério
lá onde habitam as vizagens
e se tira:
-"carreiro bebe
candeeiro
também bebe
Nos'Siô
mandou dizer
pra dar licença
d'êle beber..."

e ai de quem
ao carreiro não lhe der
dez vinténs
o u'a pataca
pro modo de lhe aplacar
a crueza da encomenda

pois carreiro bebe lapada
uma e duas de golada
e é seu de direito
beber


há um caso velho
contado
de quem lhe negou a paga
e um gole do corote

boi manso virou brabo
roda trancou no eixo
defunto ficou derreado
e os bois jugados
danaram a correr o mundo

pois conforme conta a cantiga
carreiro tem de beber
e receber sua paga
pra se evitar bom trovejo


dia chuvoso
é o dia mais de melhor
de se terrear defunto
todo mundo ali
boca travada
até a hora do arrio
aquela goelada de estrondo
a parentada chorando
e Isidora Nêga
virando tudo que é certo
do avesso


depois é silêncio
e retirada de lá
contar uma história dos antigos
mostrar uma cova velha de um parente
e adeus saudade
que nunca mais q'eu venho mais cá
só quando houver o rebuliço
de outro defunto pra velar

e aí é remexer no baú
tirar u'a muda de bulgariana
e começar a laúza
que estremeçe o chão da casa:
- cadê o resplendor da imagem?
- passaram corana no chão?
- os meninos s'tão retirados?
- tem café?
- tem bolo e biscoito?
- tem beiju e caxixa nova?
- Mariquinha tá no incômodo...?


e já começa a labuta
de se lavar o defunto
e já se bebe ali
a primeira
a abrideira
a que garante a viagem
de se velar
tudo junto

e vamos beber ao morto
vamos louvar incelênça
das encomendas dos mortos
e vamo beber no veróli


vamo beber
ao defunto


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